"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
Há, nos olhos meus, ironias e cansaços
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Sei que não vou por aí! Poemas de Deus e do Diabo (1925) O poema ‘Cântico Negro’ é dedicado a Sofia D’Orey.
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Breve biografia de José Régio
Por
Luís Miguel Costa
José Maria dos Reis Pereira nasceu em
Vila do Conde a 17 de Setembro de 1901. A sua vida é marcada por três meios:
Vila do Conde e o seu mar, Coimbra e a sua tradição do tardio século XIX,
Portalegre e o mundo largo e ancestral que ela significa.
Filho de Maria
da Conceição Reis Pereira (1876-1946) e de José Maria Pereira Sobrinho
(1876-1957), terá ficado a dever ao pai um certo e duradouro gosto pela vida,
subjacente e teimoso, mesmo nos piores momentos, e também um gosto precoce pelo
teatro. Foi ao temperamento materno, nervoso, errático, ansioso, doentio,
obsessivo, que foi buscar o seu fundo humano-artístico. José Maria tinha ainda
quatro irmãos mais novos: Júlio, artista plástico que como poeta usa o
pseudónimo de Saúl Dias, Antonino, emigrado para o Brasil onde faleceu,
Apolinário, oficial do exército e artista plástico, e João Maria, autor de um
livro de poesia e também dado às artes plásticas.
Ainda muito
novo José Maria começa a ler e a escrever. Dos doze para os treze anos escreve
o primeiro caderno de versos a que dá o nome de Violetas. Aos
quinze anos descobre António Nobre, cujo Só o impressiona
extraordinariamente. É um leitor atento, apaixonado, fiel aos seus amores,
perspicaz, mas não um leitor voraz. Gosta de demorar com um texto, meditando-o,
interrogando-o frequentemente, abandonando-o provisoriamente para a ele voltar
mais tarde. Desconfia mesmo do tipo de leitor devorador de livros. Ler é pois
um acto crítico, que se pratica em profundidade, um modo de ir dentro que
se consegue pela qualidade e não pela quantidade da leitura.
Os seus
primeiros grandes entusiasmos são o Rocamble de Ponson du
Terrail e Os dois garotos de Pierre Decourdelle. Outra grande
influência, não só da juventude mas de toda a vida, foi Flaubert, sendo
possível descobrir uma mundo de encontros e coincidências entre ambos: a
solidão, a neurose criadora, a descoberta do trabalho como forma de salvação, a
aversão a escolas, a consciência profissional, a recusa da capital com a sua
agitação superficial e pretensiosa, as atitudes perante a vida... Grande
influência durante os seus anos de formação tiveram ainda a Vida de
Jesus de Renan, os Evangelhos, o Antigo Testamento e
a Imitação de Cristo.
Entre os
catorze e os dezoito anos perdeu a fé. A sua fé nunca tivera um
apoio intelectual articulado, havia sido sempre algo muito problemático e
poroso à perfídia da dúvida.
Até aos
dezasseis anos frequenta o liceu de Vila do Conde, respirando o ambiente familiar
da Velha Casa. Esta pequena cidade e a casa foram ao longo da vida
o seu refúgio, o regresso ao paraíso da infância, o polo de atracção. Os dois
últimos anos do liceu frequenta-os no Porto, num colégio como aluno
semi-interno, estando matriculado no Liceu Rodrigues de Freitas.
Terminados os
estudos secundários na Póvoa do Varzim e no Porto, matricula-se na Faculdade de
Letras de Coimbra, na secção de Filologia Românica, onde conclui a licenciatura
em 1925, com uma dissertação revolucionária para o tempo: As Correntes
e as individualidades da Moderna Poesia Portuguesa. Esta escolha da cidade
do Mondego significava, por implicação, a rejeição da Faculdade de Letras do
Porto, onde dominava a figura de Leonardo Coimbra, cuja maciça sedução deixara
o jovem José Maria de pé atrás. Perturbado, dividido, inquieto, sedento
de clareza e não de brilho é sobretudo
António Sérgio quem o atrai e equilibra. Parte para Coimbra aos
dezoito anos, após uma grave crise nervosa que durou o período das férias
grandes e que a mudança acabará por curar. Crise nervosa a que dá muita
importância e onde se revela o seu temperamento quase patologicamente nervoso
herdado da mãe.
A estadia em
Coimbra prolongar-se-á até 1927. É um período longo de aprendizagem, de
descoberta dos outros e de si próprio, numa alternância entre um convívio
apetecido e um retiro necessário. Apesar de aluno irregular, raramente indo às
aulas, lê intensa e extensamente, surpreendendo os colegas com os nomes
desconhecido na Coimbra de então.
Ainda no ano
de 1925 dá-se a sua estreia literária, publicando Poemas de Deus e do
Diabo, usando pela primeira vez o pseudónimo de José Régio. Os Poemas não
tiveram imediatamente uma aceitação espectacular mas foram acolhidos com
entusiasmo e perturbação.
Em 1927 funda,
com João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca, a revista e o movimento
literário da Presença. A revista pretendia promover um movimento no
sentido de revitalizar as letras e as artes em Portugal, promovendo a imagem
dos principais argonautas do primeiro modernismo e lançando as bases de uma
crítica exigente do estado das letras no país. Os homens da
Presença apresentam-se ainda como criadores, aliando às conquistas
revolucionárias do primeiro modernismo um sentido de equilíbrio e um arrefecimento crítico
pedagógico que lhes vai permitir impor a arte moderna a um público relutante e
despreparado.
Do ponto de
vista religioso os anos de Coimbra devem ter correspondido à ponta negativa
mais acentuada de toda a sua carreira, andando indiferente a qualquer ideia ou
sentimento de Deus e vivendo o seu crer não crendo.
Em 1928, José
Régio fixa-se em Portalegre como professor do Liceu Mousinho da Silveira, funções
que desempenhará durante trinta anos, até 1962 ano da sua reforma. Apesar de
afastado geograficamente do centro de produção da revista Presença continua a
dirigi-la com Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Em 1930 este último
afasta-se, assinando com Miguel Torga e Edmundo de Bettencourt uma carta de
despedida. A vaga deixada na direcção da revista é preenchida por Adolfo Casais
Monteiro, que permanecerá no cargo até à extinção da revista em 1940.
Depois
do vendaval de Coimbra, Portalegre era o isolamento, numa
pequena cidade provinciana sem horizontes culturais, sem amigos. Aqui o autor
de A Velha Casa leva a cabo uma obra literária notável pela
profundidade, pelo volume e pela variedade, fazendo proveito do sofrimento em
que vivia.
A mudança para
o Alentejo foi-lhe de difícil aceitação. Mas vencida a resistência dos
primeiros tempos, acaba por cair numa habituação difícil mas profunda e a estranha
casa da Boa Vista iria tornar-se o melhor ambiente de trabalho,
a oficina onde a maior parte da sua obra seria elaborada. À
medida que vai criando amigos e raizes em Portalegre a vida solitária
vai-se-lhe tornando menos difícil, às vezes quase aprazível. O tédio e o
desespero tornam-se, também, promotores de criação; o autor assume e utiliza a
solidão mas, no fundo, não se resigna a ela.
Como professor
era meticuloso, distante, austero. Tinha um cuidado extremo em não faltar às
aulas e interesse pelas actividades dos estudantes, chegou mesmo a escrever e a
ensaiar uma peça de teatro com os seus alunos.
Os anos de
Portalegre foram sobretudo anos de criação. Em 1929 publica Biografia,
uma colectânea de sonetos. Em 1934 publica o seu primeiro romance, o Jogo
da Cabra-Cega, onde se revelam algumas das suas tendências mais salientes:
o pendor analítico, o gosto pelo anormal como catalisador da
personalidade mais profunda do ser humano, a vontade espectacular e
teatralizadora e a atitude irónica, sarcástica e permanentemente interrogadora.
Em 1936
publica As Encruzilhadas de Deus e o opúsculo Críticos
e Criticados (Carta a um Amigo). Em 1938 publica António Botto e o
Amor. Em 1940 publica o ensaio Em Torno da Expressão Artística e
o Primeiro Volume de Teatro, que inclui o mistério em três
actos Jacob e o Anjo e a peça em um acto As Três
Máscaras. No ano de 1941 publica a novela Davam Grandes Passeios
aos Domingos, o livro de poemas Fado e a Pequena
História da Moderna Poesia Portuguesa, refundindo a sua tese de
licenciatura. Em 1942 publica o romance O Príncipe com Orelhas de Burro.
Em 1945
publica Mas Deus é Grande, a antologia Poesia de Amor e
o primeiro volume de A Velha Casa, o romance Uma Gota de
Sangue. Em 1946 publica Histórias de Mulheres, uma colectânea
de contos e novelas. Em 1947 publica As Raizes do Futuro, segundo
volume de A Velha Casa, e a peça Benilde ou a Virgem-Mãe.
Em 1949 publica o poema espectacular El-Rei Sebastião. Em 1953
publica o romance Os Avisos do Destino, terceiro volume de A
Velha Casa. Em 1954 publica a tragicomédia A Salvação do Mundo.
Em 1956 publica o volume Poesia de Ontem e de Hoje para o Nosso Povo
Ler. Em 1957 publica a antologia de poesia de amor portuguesa Alma
Minha Gentil e o volume Três Peças em um Acto, que
inclui Três Máscaras, O Meu Caso e Mário o
Eu Próprio-o Outro. Em 1958 publica em colaboração com Alberto de Serpa uma
antologia de poesia religiosa portuguesa Na Mão de Deus. Em 1960
publica o romance As Monstruosidades Vulgares, quarto volume
de A Velha Casa. Em 1961 publica o livro de poesias Filho
do Homem, que será galardoado com o Prémio Diário de Notícias. Em 1962
publica o volume de contos Há Mais Mundos.
Além da poesia
e do romance, destacam-se na sua obra os vários géneros literários: a crítica e
o ensaio, sobretudo em artigos publicados na Presença e em
várias outras revistas com que colaborou, e o género dramático, cultivado em
tanta da sua poesia, com a publicação de várias peças teatrais.
Do ponto de
vista religioso ia vivendo numa espécie de labirinto,
degladiando-se razão e sentimentos obscuros, profundos. A própria razão se
contraditava com argumentos contrapostos; os próprios sentimentos o atraíam a
posições opostas ou diversas. A procura de Deus pelas vias usuais dos filósofos
não lhe interessava; para José Maria Deus tinha que ser uma personalidade, uma
existência concreta, uma transcendência viva — era deste Deus que necessitava e
que continuamente buscava.
Neste mesmo
ano de 1962 reforma-se e vai viver para Vila do Conde. Chegara ao fim a sua
estadia em Portalegre. Aqui fizera alguns amigos fiéis, juntara uma notável
colecção de arte sacra e popular, ensinara alguns milhares de alunos e
transformara a vida interiormente agitada no tumulto sereno de uma obra sólida
e durável. Na obra de José Régio temos presente uma diversidade de estruturas,
temas, alegorias, mitos, símbolos e motivos, com que o autor procura exprimir
não só o seu caso pessoal mas a condição humana nas suas alturas e
nos seus abismos, nas suas condições labirínticas e nas aspirações
de Eternidade e Absoluto, nas suas impossibilidades e nos seus limites, nas
suas esperanças e nos seus desesperos, nas suas vulgaridades e nas suas
sublimidades.
Vive ainda
perto de oito anos na pequena cidade do Ave. Anos de trabalho tranquilo, apenas
sobressaltados por uma experiência traumática no Sanatório Rainha D. Amélia em
Lisboa e pela agitação provocada pela sua actividade jornalística. Régio era o
alvo preferido de todos os movimentos literários que apareciam a renovar definitivamente a
paisagem das letras portuguesas. Os seus últimos anos foram agitados por
polémicas que com o seu feitio combativo e obstinado desencadeou e alimentou.
Em 1964
publica Ensaios de Interpretação Crítica, volume em que recolhe,
corrigindo e desenvolvendo, textos já aparecidos noutros volumes ou em jornais,
dedicados a Camões, Camilo, Florbela, e Mário de Sá-Carneiro. Em 1966 publica o
quinto volume de A Velha Casa, com o título Vidas são Vidas.
Em 1967 publica Três Ensaios sobre Arte, incluindo os ensaios Em
Torno da Expressão Artística, A Expressão e o Expresso e Vistas
sobre Teatro. Em 1968 publica Cântico Suspenso, livro que
esteve na origem de uma releitura de Régio que muito terá
contribuído para amargurar os últimos dias do poeta. Em fins de 1968 começa a
escrever Confissão dum Homem Religioso, dando por praticamente
concluída em Setembro de 1969 a primeira redacção do livro. Iniciara também a
redacção do sexto volume de A Velha Casa.
Em Outubro de
1969 é acometido de um violento enfarte do miocárdio, de que viria a falecer a
23 de Dezembro na sua casa de Vila do Conde.
A
personalidade e a obra de José Régio enchem uma época, ocupam um importante
espaço da vida mental portuguesa, e só por si são o orgulho para o século XX
não ter que invejar o século XIX português. Régio, tão religioso como Antero,
foi mais completamente artista e tão filósofo como ele. Foi mesmo o que Antero
não chegou a ser: um homem realizado em todos os aspectos em que aspirou
realizar-se. Não se realizou a nível político, mas também não foi um político
mas antes de tudo um homem religioso. Situá-lo numa época antes de mais
política e conferir-lhe em função dessa época os atributos que revestiam a sua
missão enquanto escritor é, se não mais, anacrónico. Régio procurou acima de
tudo ser um espírito religioso, não apenas no sentido passivo que a religião
apresenta nos seus místicos, mas no sentido positivo que a religião apresenta
nos seus representantes proféticos, nos seus apóstolos, nos seus
evangelizadores.
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