Duro acorde e dissonante,
súbito, altera a cadência do dia.
Ouviu-se um grito, a freada...
O impacto fulminante
estanca ao tráfego, a via..
Num átimo, esfacelado,
qual o fantoche de um Judas
de pano e areia, assim, fútil,
jaz o anônimo pedestre
sob um semáforo inútil.
Dezenas de rostos estupefatos
juntam-se, então, à sua volta.
Alguns estampam piedade,
outros expressam revolta.
Estridente, uma sirene
de ambulância abre caminho.
Agora um silêncio grave
sobrepõe-se ao burburinho.
Triste, a cantiga da vida,
na toada interrompida,
ensaia o seu recomeço.
Quem paga por essa vida?
Quem sabe o seu justo preço?
Acima dos limites da cidade,
com seus contrastes brutais,
altívolas andorinhas
grafam no éter, asinhas,
bosquejos originais...
Dir-se-ia terem sido
eleitas por emissárias
de um reino mágico, infindo,
para além do espaço anil.
Conduziriam ess’alma remida
ao portal da eterna vida
que a humana ciência, em vôos
rasantes, nunca atingiu?
Oh, sim, talvez tenha, entre elas,
ganhado duas asas libertárias
para as viagens interplanetárias
que os códigos divinos das estrelas
concedem aos que a morte redimiu.
... De novo se abre a sirene.
Os transeuntes seguem, frágeis,
entregues, muitos agora,
aos plúmbeos cismares seus.
Nenhum faz o esforço de olhar para o alto.
Mística - a mancha de sangue do asfalto
passa depressa aos velozes pneus...
(Do Livro "Estado de espírito", de Sersank)
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