Nesta noite em que me via
mais só do que nunca
em que nem a música do
rádio
a paz da lua cheia
ou as estrelas no céu sem
nuvens
afastavam-me a melancolia
-
esse gosto de licor amargo
que sempre quis evitar -
deixei a janela de vidro
sentei-me no leito hospitalar
e estou agora a tocar os
meus pés.
Dão-me notícias
de dias há muito
arrancados
ao calendário dos anos:
trilhas
pastos plantações pomares
estilingue no peito
estradas boiadeiras
vendas vales valetas
pontes e rios.
Recordam-me esquinas
cobertas de grama
peladas de futebol
pedras e chinelos
demarcando
limites ao gol.
Dias de pipas ao vento
de andar pelas ruas com
pernas de pau
carrinhos de rolimã
jogos de malhas nas ruas
vermelhas
bola a doer nas queimadas
pulos de amarelinhas,
batidas de bets
partidas de bochas
pião bilboquê burquinhas.
Dias festivos:
quermesses
corridas de saco
pau-de-sebo
banhos de rio.
Velhos e sofridos pés.
Lembram-me a escola
primária -
o edifício amarelado
de muros altos que não me
continham
e onde a “Cartilha Suave”
do ler e escrever
descortinou-me o mundo.
Saudade: aquelas manhãs de
frio
o leite quente em casa
o pão de forno caseiro.
As aulas de Dona Filinha
inesquecível amiga:
ela toda atenção e carinho
e sempre um moleque ou
outro
na sala querendo briga.
Enquanto corríamos doidos
os meninos
no recreio
ouvia a cantiga no pátio:
“Ciranda,
cirandinha,
vamos todos
cirandar
vamos dar a meia
volta
volta e meia
vamos dar.”
......
Ventura tocá-los ainda.
Estes pés rebeldes
cansados
já não se atrevem a colher
mangas nos quintais vizinhos
mas me devolvem a grata magia
de viver sem pressa.
......
À luz de um poste
fraquinha
ouço meninas e meninos.
Tento revê-los, um a um,
nos toscos bancos de
madeira
os pés se tocando,
a empurrões e risadas.
Noites de lua (folguedos):
passa-anel
rei-rainha
pique-salva
garrafão.
Noites escuras e frias (o
medo):
Tempos de afrontamento
às almas penadas das ruas
e a gente contando
causos de assombração.
.......
Perdi como perdemos
ao calendário dos anos
a infância
aquelas tardes de chuva
fina molhando a roupa
seus dias plenos de sol.
.......
Meus pés. Estes pés. Tentativas
nem sempre bem sucedidas
de varar o pano dos circos.
Entradas triunfais no
salão do cinema.
Passos a dois no primeiro namoro.
Passeios na praça da
Igreja.
Estes mesmos pés no trabalho
duro
mal remunerado
e em fuga da escola.
Meses de vadiagem
dificuldades sem fim.
O filho do sapateiro,
queria ganhar o mundo
e o tempo a girar
continuamente
na ampulheta dos dias
fazia-me pescador que
volta
sem peixe, ao cair das tardes.
Vieram lutas e lutas
ao longo da trajetória.
Um casamento acabou-se
ainda na mocidade.
O outro consolidado
na madureza, perdura.
Filhos nasceram, cresceram
e - partes dessa aventura
-
deram-me netos, abriram
outros, melhores destinos.
Sabem estes pés
de envelhecidos sonhos
do menino que sou.
Agora -
chegada a vez de
transpassar
a nebulosa ponte
que de tudo nos separa -
certo estou de retomar roteiros
em que não mais me serão
necessários
e assim como de tudo me
despeço
digo adeus aos meus pés.
Devo-lhes muito.
Sangrando nas sendas de
pedra
trouxeram-me ao tempo
que ansiava viver.
Afastam-me agora a
tristeza.
Dão-me a certeza
de que sob as asas da alma
Não param. Não podem
parar.
Aos píncaros mais altos da
existência humana
meus pés
meus velhos, sofridos pés,
hão de, por certo, chegar.