A cada um será dado
ouvir, por mais descuidado,
a voz que vem do Jordão
e, em íntimo alumbramento,
dura, faz o chamamento
a imergir-se o coração.
Desencadeia a refrega.
que se estava a postergar.
Soa essa voz dos desertos
como ciclone a ordenar:
- Abrir mão do que sobeja,
dar de si, compartilhar...
Trocar os lumes da noite
pelas benesses do lar;
deixar a amante, a bebida,
o jogo, o cigarro, a droga;
romper vínculos; parar.
Parar, refazer os planos,
ressarcir perdas e danos,
pedir perdão, perdoar...
Enquanto flameja o dia
e as pessoas são visíveis;
enquanto tens energia
e restem sonhos possíveis;
antes de outro alumbramento,
de outro qualquer desvario,
cerra os olhos, deixa n’alma
percutir o chamamento.
Amigo, não vás perder-te
no imenso vale sombrio.
Porque, além, transposto o rio,
a nuvem cósmica terá tragado tudo.
E nessa asfixiante, tenebrosa bruma,
o fardo de suas dores
é tudo o que o viandante incauto tem.
Embalde há de esperar
que nasça um novo dia
e haja um caminho, um horizonte além.
Naquele solo hostil, todo exilado,
por medo, apenas medo, ousa avançar.
Se grita, o grito ousado esvai-se e, longe,
de gritos, aos milhares, faz-se acompanhar...
Ali, sabe-se, amigo, os sentenciados,
sem um salvo-conduto, sem o escudo
do título, do nome, da fortuna inglória,
sorvem do fel que evola a pira dos pecados;
colhem, no lodo, o horror, por ceifa obrigatória.
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Desencadeia a refrega,
ouve a voz do eterno rio!
Amigo, não vás perder-te
no imenso vale sombrio...
(Da coletânea "Estado de Espírito" , de Sergio de Sersank)