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sexta-feira, 25 de agosto de 2023

ODE AOS MEUS PÉS

 



Foto de autor desconhecido


(Relembranças)

Sergio de Sersank

 

Nesta noite em que me vi mais só do que nunca

em que nem a música do rádio

a paz da lua cheia

ou as estrelas no céu sem nuvens

afastavam-me a melancolia -

esse gosto de licor amargo

que sempre quis evitar -

deixei a janela de vidro

sentei-me no leito hospitalar

e estou agora a tocar os meus pés.

                       

Dão-me notícias

de dias há muito arrancados

ao calendário dos anos:

 

trilhas

pastos plantações pomares

estilingue no peito

estradas boiadeiras

vendas vales valetas

pontes e rios.

 

Recordam-me esquinas cobertas de grama

peladas de futebol

pedras e chinelos demarcando

limites ao gol.

 

Dias de pipas ao vento

de andar pelas ruas com pernas de pau

carrinhos de rolimã

jogos de malhas nas ruas vermelhas

bola a doer nas queimadas

pulos de amarelinhas,

batidas de bets

partidas de bochas

pião bilboquê burquinhas.

Dias festivos:

quermesses

corridas de saco

pau-de-sebo

banhos de rio.

 

 

Velhos e sofridos pés.

Lembram-me a escola primária -

o edifício amarelado

de muros altos que não me continham

e onde a “Cartilha Suave”

do ler e escrever descortinou-me o mundo.

 

Saudade: aquelas manhãs de frio

o leite quente em casa

o pão de forno caseiro.

 

As aulas de Dona Filinha

inesquecível amiga:

ela toda atenção e carinho

e sempre um moleque ou outro

na sala querendo briga.

 

Enquanto corríamos doidos

os meninos

no recreio

ouvia a cantiga no pátio:

 

“Ciranda, cirandinha,

vamos todos cirandar

vamos dar a meia volta

volta e meia vamos dar.”

 

......

 

Ventura tocá-los ainda.

Estes pés rebeldes

cansados

já não se atrevem a colher mangas nos quintais vizinhos

mas me devolvem a grata magia

de viver sem pressa.

 

......

 

À luz de um poste fraquinha

ouço meninas e meninos.

Tento revê-los, um a um,

nos toscos bancos de madeira

os pés se tocando,

a empurrões e risadas.

 

Noites de lua (folguedos):

passa-anel

rei-rainha

pique-salva

garrafão.

 

Noites escuras e frias (o medo):

Tempos de afrontamento

às almas penadas das ruas

e a gente contando

causos de assombração.

 

.......

 

Perdi como perdemos

ao calendário dos anos

a infância

aquelas tardes de chuva fina molhando a roupa

seus dias plenos de sol.

 

.......

 

Meus pés. Estes pés. Tentativas

nem sempre bem sucedidas

de varar o pano dos circos.

Entradas triunfais no salão do cinema.

Passos a dois no primeiro namoro.

Passeios na praça da Igreja.

 

Estes mesmos pés no trabalho duro

mal remunerado

e em fuga da escola.

Meses de vadiagem

dificuldades sem fim.

 

O filho do sapateiro,

queria ganhar o mundo

e o tempo a girar continuamente

na ampulheta dos dias

fazia-me pescador que volta

sem peixe, ao cair das tardes.

 

Vieram lutas e lutas

ao longo da trajetória.

Um casamento acabou-se

ainda na mocidade.

O outro consolidado

na madureza, perdura.

 

Filhos nasceram, cresceram

e - partes dessa aventura -

deram-me netos, abriram

outros, melhores destinos.

 

Sabem estes pés

de envelhecidos sonhos

o menino que sou.

Sabem a força que têm

ao suportar o peso

da mente presa a um corpo material.

 

Agora,

chegada a vez de transpassar

a nebulosa ponte

que de tudo nos separa,

certo estou de retomar roteiros

que me serão necessários

e assim como de tudo me despeço

digo adeus aos meus pés.

 

Devo-lhes muito.

Sangrando por sendas de pedras

trouxeram-me ao tempo

que ansiava viver.

 

Afastam-me agora a tristeza.

Dão-me a certeza

de que sob as asas da alma

Não param. Não podem parar.

 

Aos píncaros mais altos da existência humana

meus pés

meus velhos, sofridos pés,

hão de, por certo, chegar.

 

 

Londrina, 20 de setembro de 2019.

 

 

 

 

COMENTÁRIOS:


Mary Fontán

 

Preciosa poesia!

FB, 25set2019

 

Delviene Oliveira:

 

Sérgio, bom dia! Obrigada pela atenção! Vi sua postagem agora pela manhã.

Vc é uma pessoa iluminada. Quanta sensibilidade... Meu Deus! Estou encantada! Um ótimo dia pra vc! Abcs meu amigo.

FB, 25set2019

 

                               Nicéia - J. Fagotti disse...

Somos caminheiros, mas depois de atravessar o rio os nossos pés criarão asas. Seremos alados! Glória!

quarta-feira, 25 de setembro de 2019 22:55:00 BRT 

 


Sergio de Seresank:


Essa espiritualidade, esse sentimento de perenidade existencial, é o que nos anima a prosseguir confiantes, independentemente de termos ou não uma religião. Segundo a Lei de Lavoisier "No Universo nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma". Seremos também transformados em pura energia. Ao morrer, ganharemos, quem sabe, a condição de almas celestes, de almas filhas do espaço infinito de Deus.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019 22:29:00 BRT 



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