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sábado, 5 de agosto de 2023

A grande poesia de ALBERTO DA CUNHA MELO, poeta pernambucano

 


Alberto da Cunha Melo, um dos expoentes da chamada "Geração de 65", em Pernambuco foi sem dúvida alguma, um dos maiores poetas da língua portuguesa, no século XXI. 

Sersank








Uma poesia de sangue

 

Escrito por Ângelo Monteiro   

Sex, 01 de Fevereiro de 2008



Podemos considerar, pelo menos, três formas de poesia: a de sangue, a de mármore e a de gesso. A de sangue se caracteriza pelo intercâmbio vital entre o homem e a realidade, mesmo quando se constela de significados que a ambos possam transcender. A poesia de mármore pela propriedade de superar as crispações do seu tempo, por habitar estrategicamente um espaço impenetrável tanto aos ventos quanto às ondas. E a poesia de gesso que, à margem quer das exigências do tempo, quer dos sopros da eternidade, é fofa e oca mas — porque irremissivelmente decorativa, pois ninguém reza a santos de gesso — tende ao solene e a um solene que não conheça nenhuma forma de contradição. Nem mesmo a de confundir continuamente fôrma com forma. 

Alberto da Cunha Melo pertence à poesia que, entranhada no sangue, como a de um Augusto dos Anjos, no Brasil, e a do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, em Portugal, pouca relação aparenta com o mármore e, menos ainda, com o gesso. O poeta que escreve: “Viver, simplesmente viver,/ meu cão faz isso muito bem:/ quero dentes mais fortes,/ quero a poesia que for possível,” se não demonstra boa compreensão com a águia e a serpente nietzschianas — o vôo aquilino da razão e o retorno à circularidade da terra — , muito menos se acomodaria com os passarinhos de gesso ou com os anjinhos de procissão.

Enquanto a poesia de mármore resiste às afecções das conjunturas, como em um Rilke ou em um Fernando Pessoa ortônimo, a de sangue faz dessas mesmas conjunturas o alicerce do próprio canto. O poeta para quem “a palavra Deus está fria/ como uma máquina ao relento”, sabe o que vale o peso da historicidade para o pulsar do próprio sangue, e embora não pretenda enfrentar o mundo com a consistência e a constância do mármore, do mesmo modo estará distante de acreditar em monumentos de gesso que, ao iludirem pela faiscante brancura da aparência, costuma fazer da superfície toda sua profundidade.

Apesar de uma poesia aberta às vicissitudes temporais, Alberto da Cunha Melo, em vez de aderir a um tipo de flexibilidade que nivela no mesmo estalão a disciplina e a indisciplina estéticas, amplificou, desde a longa fase dos octossílabos, a utilização de outras formas fixas, inclusive as criadas por ele, como a retranca dos seus últimos livros: Meditação sob os lajedos, Yacala e O cão de olhos amarelos, sempre nadando na contracorrente da pós-modernidade que, em seu vale-tudo, abarca concepções como, no domínio das artes plásticas, a arte conceitual, essa maneira enviesada de suprir a ausência de qualquer pique criador. 

O rigor, portanto, com que Alberto da Cunha Melo trabalhou a matéria poética não se esmoreceu nem mesmo quando ele chegou a conclusão de que “poema nenhum, nunca mais/ será um acontecimento,/ escrevemos cada vez mais/ para um mundo cada vez menos,/ para um público dos ermos,/ composto apenas de nós mesmos”, como ele anuncia em um dos seus últimos livros, Meditação sob os lajedos. Isso vem apenas comprovar que nem sempre uma concepção um tanto desconfortável da existência — e qual delas é mais confortável? — tem que vir necessariamente desacompanhada de parâmetros de valor estético, de caráter axiológico, ainda quando estes pareçam contraditórios com essa mesma existência.

Por outro lado o seu confesso construtivismo nunca se fundamentou sobre fórmulas em desacordo com sua própria experiência existencial, como se a poesia fosse uma coisa e a vida uma bem outra, ou um exercício inofensivo que dispensasse quaisquer conseqüências sobre a sociedade e a cultura. O que seria, no mínimo, bastante estranho a um poeta que pregava: “A poesia não é mais feita/ de água, de colírio indulgente:/ mude de verso, se não pode/ mais, nunca mais mudar de vida”.

Mas independentemente de uma visão construtivista — como a dele e a de João Cabral — ou criadora e inspirada, no sentido de Jorge de Lima, é o rigor a virtude por excelência de uma arte como a poesia que deve ir além das palavras da tribo para alcançar o universal na linguagem. E esse é o elemento mais distintivo dessa poesia em comparação com as seduções facilitárias que costumeiramente parecem rondar a produção poética brasileira contemporânea. 

A partir de Círculo Cósmico, e intensificando-se em Oração pelo poema e Publicação do corpo, há uma temática constante no poeta: a necessidade de uma poesia que transcenda a circunstância e a certeza de que essa transcendência é impossível, por não conseguir se realizar além da linguagem, como ele nos mostra numa das estrofes de Oração pelo poema, o único de seus livros de caráter místico: “Dá-me uma canção que me salve/ no tempo em que as canções morreram,/ para tocá-la no piano/ velho, cada noite mais alto”. Tal temática converge para a morte que, “nova prosódia/ de uma palavra sem sentido”, durante a adolescência se esconde, traiçoeira, no seio da vida: “que só no engano a gloriosa/ lâmpada breve dos mortais/ pensa brilhar mais que uma rosa/ ou essa lasca de lajedo/ que da eternidade tem medo”, como a define no poema Adolescência, em Meditação sob os lajedos.

A impossibilidade de realizar a transcendência e, de igual modo, a certeza inescapável da morte transforma essa poesia numa espécie de Imitação de Cristo às avessas: por não prometer nenhuma imortalidade, ao contrário da de Tomás de Kempis, a poesia é um dom dado aos mortais apenas para ser um dom, e nada mais que isso. Como responder outra coisa à pergunta que se encontra em Yacala: “Quando mudar é, simplesmente,/ ser no outro ser, sob a promessa/ de assustadora eternidade/ que a alma do cosmo atravessa,/ que gorjeios de anjos essa gente/ suporta ouvir eternamente?”.

Ora, foi justamente a consciência dessa fragilidade intrínseca à condição mortal, que levou Alberto da Cunha Melo a incorporar em sua grande obra o legado da tradição para revestir de rigor e fulgor a palavra em língua portuguesa e, dessa forma alcançar para o verso a mesma necessidade da poesia de mármore: a perenidade de todas as coisas na linguagem. E isso faz a maior diferença — sobretudo na atualidade — em relação aos pólos gesseiros quase infinitos da poesia nacional. 


(Leia a matéria especial na íntegra, na edição nº 86 da Revista Continente Multicultural.)

Fonte:

http://www.revistacontinente.com.br/index.php/component/content/article/2690.html, acesso em 08jul2012.


Casa vazia


* Por Alberto da Cunha Melo

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

 Alberto da Cunha Melo*

 

* Alberto da Cunha Melo (José Alberto Tavares da Cunha Melo) nascido em Jaboatão, Pernambuco, pertence à Geração 65 de poetas pernambucanos. Como Sociólogo atuou durante onze anos na Fundação Joaquim Nabuco. Jornalista, foi editor do Commercio Cultural do Jornal do Commercio, e da revista Pasárgada. Foi colaborar da coluna Arte pela Arte, do Jornal da Tarde, SP, e mantém a coluna Marco Zero, na revista Continente Multicultural. 

Foi Vice-Presidente da União Brasileira de Escritores em Pernambuco, na sua primeira gestão. Por duas vezes Diretor de Assuntos Culturais da FUNDARPE e, recentemente foi um dos indicados para o Prêmio Nacional Jorge Amado (2002). 

Sua poesia não se rendeu ao charme das vanguardas e encontrou no metro octossilábico (308 poemas, 4900 versos, em cinco livros já publicados) , o  mais raro em Língua Portuguesa, a melhor melodia para o seu canto fraterno, e “sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia cujo nome secreto é – resistência.” (Alfredo Bosi, no prefácio do livro Yacala). 

Em 2001, foi incluído nas antologias: Os cem melhores poetas brasileiros do século XX, Geração Editorial, SP, e 100 anos de poesia. Um panorama do poesia brasileira no século XX.

Em dezembro de 2002, publicou seu 12º título de poesia, Meditação sob os Lajedos.

Fonte:

http://www.jornaldepoesia.jor.br/acmelo.html

 

Obras Publicadas

 

1966 -  Círculo Cósmico - Separata da revista Estudos Universitários, da UFPE - Recife - PE.

1967 -  Oração pelo Poema - Separata da revista Estudos Universitários, da UFPE - Recife - PE

1974  -  Publicação do Corpo - in Quíntuplo - Ed. Aquário - Recife -     PE.

1978 - Planejamento Sociológico- (em co-autoria com o sociólogo Roberto Aguiar) - ed.                        Massangana - Recife - PE

1979  -  Dez Poemas Políticos - Ed. Pirata - Recife - PE

1979  -  Noticiário - Ed. Pirata - Recife - PE

1981  - Poemas à Mão Livre - Ed. Pirata - Recife - PE

1983  -  Soma dos Sumos  -  José Olympio Editora\ Fundarpe - São Paulo - SP

1989  -  Poemas Anteriores - Ed. Bagaço - Recife - PE

1992  - Clau - Ed. Universitária (UFRPE) - Recife - PE

1996  - Carne de Terceira com Poemas à Mão Livre - Ed. Bagaço - Recife - PE

1999    -  Yacala - Ed. Gráfica Olinda - Recife - PE

2000    - Yacala - (edição fac-similar)  Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - Natal – RN

2001    – Um Certo Louro do Pajeú (Reportagem)– EDFURN – Natal – RN.

2002    -  Um Certo Jó– Edições Uzyna Cultural – Recife – PE. 

2002 - Meditação sob os Lajedos - EDFURN/Bagaço - Natal/Recife - RN/PE


UMA ESTRANHA BELEZA

Alfredo Bosi

 

Não é por acaso que a epígrafe de Yacala é o verso de Cruz e Sousa: Vê como a dor te transcendentaliza”. A frase pungente do Poeta negro abraça de uma só vez as duas dimensões da obra de Alberto da Cunha Melo: a experiência funda do sofrimento, cuja origem é inequivocamente social, e a capacidade própria da linguagem poética de tudo passar pelo crivo da consciência pessoal, essa câmara de ressonância que acolhe, compõe e tonaliza os múltiplos estímulos que nos assediam e se fundem com nossa identidade. 

 

A dor de viver provém de determinações inescapáveis: o sangue, o sexo, a cor da pele, a classe social, o lugar da origem, o tempo e o espaço do cotidiano; a sina, enfim. O poema aceita estoicamente os sinais do corpo e os estigmas da circunstância; e os transforma, transfigura ou, se a voz é sublimadora, os transcendentaliza.

 

A estranha beleza que sai dos versos de Alberto da Cunha Melo nasce da fusão de um visceral sentimento da terra (quantas imagens pejadas de lama e lixo, mangue e cinzas!) com a aspiração infinita de quem está

 

       mirando o mar e altas distâncias 

       numa luneta de escoteiro.

 

E, no fundo sem fundo do horizonte, o que interessa é captar a luz da estrela, aquela estrela desgarrada da série cósmica”, astro que pressagia o desastre. Yacala, o Galileu negro vidente de todas as luzes do universo, é a figura nuclear que reúne cosmicamente baixios e escarpas, o instante e o eterno, a dor e a sua transcendência.

 

       Reciclando os dados do lixo, 

       busca Yacala, sobre a lama, 

       traduzir em cifras exatas 

       a voz do cosmo em voz humana, 

       domar a luz ou convertê-la 

       numa só e única estrela; 

       sem os galões da profecia 

       e as graças da revelação, 

       outro jamais rastrearia 

       aquela estrela sem fronteiras 

       a engolir galáxias inteiras.

 

É uma narrativa da busca; uma narrativa que atravessa o sacrifício, a violência bestial e a morte inglória “para alcançar uma alegria / consciente, esplendor da razão, / livre como garra celeste, / que no Todo desaparece”. 

Mas há, no plano formal, outra fonte de estranheza nesta poesia, e que resulta em um efeito estético original. É o paradoxo da sua composição ao mesmo tempo rebelde ao cânon e inventora de sua própria e inflexível ordem estrófica e métrica. Estrófica: um quarteto na forma abcb, um dístico rimado, um terceto na forma ded e um dístico final também rimado. Métrica: todos os versos são octossílabos, o que produz um ritmo inusitado, pois as narrativas poéticas longas são, em geral, plasmadas em populares redondilhos maiores ou em clássicos decassílabos camonianos.

Trata-se de uma singular orquestração (o poeta chamou-a de “retranca”), que lembra remotamente o soneto inglês, mas que tem de seu o peculiar movimento musical de uma onda que, primeiro espraiada, depois recolhida, se embate por duas vezes nas barreiras sólidas dos dísticos do meio e do fecho.

 

O Nordeste nos dá, mais uma vez, depois do paraibano Augusto dos Anjos (presente de modo subliminar na atmosfera de várias passagens de Yacala), do alagoano Jorge de Lima e dos pernambucanos Carlos Pena Filho e João Cabral, a sua lição de dor que se faz beleza e arranca de si forças para construir uma poesia como a de Alberto da Cunha Melo, cujo nome secreto é resistência.


(Prefácio da edição fac-simille do livro YACALA, UFRN, Natal, RN, 2000, incluído na obra Dois Caminhos e uma Oração)

Fonte:

https://www.facebook.com/notes/alberto-da-cunha-melo-70-anos-1942-2007/uma-estranha-beleza-por-alfredo-bosi/257867064323611Acesso em 18ago2012

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